Na adega de Vilmar Bettú, em Garibaldi, repousam os vinhos mais caros do Brasil
Por Patricia Lima, Especial para o gauchazh.clicrbs.com.br
Depois de duas horas de conversa, a equipe de reportagem entra na apertada cave de envelhecimento, guiada pelo protagonista da história e dos vinhos que repousam meio amontoados, alguns em barricas de carvalho, outros em garrafões de vidro. Com uma pipeta, ele retira um pouquinho do líquido do interior de um dos barris, posando para a foto. A inscrição na madeira informa que se trata de um Nebbiolo safra 2015:
– Ainda não tá pronto. Mas dá pra beber.
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Para que possa ajeitar-se para mais fotos, o personagem entrega à repórter a taça preenchida que já cumpriu seu papel cenográfico. A máscara PFF2 não deixa entrar qualquer aroma. Mas personagem e fotógrafo se afastam um pouco. Distância segura. Bloco e caneta para o lado. Afrouxam-se os elásticos apertados da máscara. Não sei se ele tem razão, se de fato não está pronto para beber. Mas que na taça há uma experiência, isso é inegável. Aroma potente, cor vibrante, sabor intenso. E a possibilidade de estar testemunhando o futuro vinho mais caro do país – afinal, a garrafa de um antepassado seu, o Nebbiolo 2002, é vendida atualmente por R$ 7 mil. É o vinho mais caro produzido em solo brasileiro, que revela bem mais do que a ousadia e o talento do seu autor, o vinhateiro Vilmar Bettú.
O Nebbiolo 2002 e outros rótulos de valores polpudos na tabela de preços de Bettú provam que o vinho elaborado no Rio Grande do Sul não só atinge qualidade superior, mas também é capaz de atrair os seletíssimos investidores que encontram no vinho um cobiçado ativo a se valorizar no mercado futuro.
Com a máscara de volta, é hora de retomar a conversa com o anfitrião, que é quase tão bom de papo quanto de vinho. Ele explica que o preço altíssimo de alguns dos seus rótulos tem razões bem mais prosaicas do que a especulação dos caçadores de vinhos raros.
– Eu cobro pra não vir um cara aqui e comprar tudo. Nunca me preocupei se o meu vinho vai ser investimento, não sei lidar com o vinho dessa forma. Cobro pela qualidade, pela quantidade de garrafas que ainda tenho, pela procura. Quem acha muito caro, não compra. Pra mim é bom também, assim eu fico com o acervo – diverte-se Bettú.
Engenheiro mecânico por formação, Bettú fez de tudo um pouco antes de retornar para as terras da família, no interior de Garibaldi, e encontrar a vocação no velho hábito de fazer vinho, herdado do pai e do avô. Ainda criança, foi para o seminário e pediu para sair. No serviço militar foi de ferreiro a pedreiro, e escapou de punições por indisciplina presenteando superiores com o vinho feito pelo pai. Como engenheiro, atuou no setor de siderurgia, achando tudo muito chato:
– Só fiz engenharia por que disseram que eu era bom em matemática.
Já na maturidade, descobriu a sala de aula como fonte de renda e realização. Dos 50 aos 64 anos deu aulas de física, matemática e resistência dos materiais em escolas técnicas e estaduais. Também foi em busca de prazer e satisfação que retornou às terras paternas para fazer vinho, um ritual que cumpriu desde criança, ajudando os mais velhos:
– Quero viver do que me dá prazer. Com o vinho, tenho mais prazer que o cliente, por que além de tudo, ele deixa o dinheiro dele, e eu recebo – diz Bettú, em tom de anedota. – E se eu não vender, eu bebo.
Marcelo Casagrande / Agencia RBS
Bettú quebra paradigmas e produz vinhos especiais com uvas menos nobres
Marcelo Casagrande / Agencia RBS
Na pequena sala de degustação que montou ao lado da adega, no porão da casa onde mora, Vilmar Bettú recebe gente de todos os cantos, que vem curiosa para compreender o que, afinal, ele faz ali. Em meio às sempre divertidas conversas e às sempre instigantes degustações, ele revela um pouco da rotina como vinhateiro.
– O segredo para o bom vinho é a uva. Não preciso fazer grande coisa aqui, basta ter uma uva perfeita – afirma.
O que ele diz de forma despretensiosa é o maior desafio de quem faz vinhos. Uma pequena parte das uvas utilizadas em seus mais de 90 rótulos é cultivada na propriedade, em Garibaldi. O restante vem de diferentes locais do Rio Grande do Sul, especialmente a Serra do Sudeste, terroir de origem, por exemplo, da Nebbiolo, casta italiana com a qual se elabora um dos vinhos mais icônicos do mundo, o Barolo, e que por aqui está escrevendo uma história singular pelas mãos de Bettú. Até pouco tempo, as uvas eram pisadas pela própria família assim que chegavam na propriedade. Hoje, por questões sanitárias, esse processo foi mecanizado, mas não há fórmulas prontas. Conforme a uva, Bettú vai imaginando o vinho que pode nascer, dentro do conceito de microvinificação, dedicando atenção personalizada a cada pequena parcela da bebida. E vai fazendo, sem muito planejamento e com a mínima interferência, garantindo que a natureza execute seu trabalho.
Mínima interferência não quer dizer mínima tecnologia. Pelo contrário. Segundo Bettú, graças aos avanços tecnológicos e ao acesso dos produtores a eles, é possível fazer vinhos de altíssima qualidade em qualquer lugar do mundo, incluindo um porão escuro às margens de uma estrada pouco movimentada do interior de Garibaldi.
– Não procuro imitar este ou aquele estilo, nem sei qual seria o estilo do vinho brasileiro. Não estou atrás de modas ou tendências. Quero fazer vinho bom.
Apesar de grande variedade de rótulos, elaborados com um sortimento de castas – entre elas algumas antigas e pouco conhecidas, como a branca peverella e a tinta barbera –, a produção da vinícola não chega às 20 mil garrafas anuais. A ideia é chegar ao máximo de 30 mil garrafas, mas ainda não se sabe quando. Isso nem preocupa muito a família Bettú. O objetivo maior é organizar o acervo e garantir um estoque ao qual se possa recorrer para testar a longevidade e a evolução dos vinhos.
O rótulo minimalista, com uma simples folha de parreira, é a marca final dos vinhos do Bettú, que assina todas as garrafas, que saem numeradas da vinícola. Fora da sala de degustação é difícil encontrar um rótulo. Um ou dois restaurantes em São Paulo e no Rio de Janeiro mantém opções em suas cartas. Em Porto Alegre ninguém tem, à exceção de colecionadores. Para comprar, é preciso mesmo entrar em contato com o próprio Bettú ou com a filha, Larissa. À véspera de completar 75 anos, é assim mesmo que Vilmar quer seguir se relacionando com seus clientes, admiradores e compradores.
A certa altura da conversa, resolve demonstrar para a equipe o que acredita ser a sua essência de vinhateiro, sem preconceitos, apostando na técnica e na qualidade da uva para elaborar uma bebida surpreendente. Enquanto fala sobre isso, saca de um amontoado de garrafas uma contendo um líquido rosado vivo. Serve um pouquinho em uma taça e prova.
– Esse aqui é feito de Isabel, acredita? É de um vinhedo aqui da propriedade, que tem 131 anos. É interessante, né?
Depois de garantir uma distância segura para tirar a máscara mais uma vez, o que se revela são aromas e sabores diferentes do que se espera de uma bebida feita com a uva normalmente usada para elaborar suco e vinho de mesa. Não é o embrião de um vinho de altíssimo valor, mas prova que as mãos do vinhateiro podem quebrar paradigmas e preconceitos, revelando caminhos de um produto brasileiro com potencial para agregar valor e personalidade. Seja na garrafa de R$ 7 mil, seja na bebida feita com uva de suco.
Atelier Tormentas / Divulgação
O vinhateiro Marco Danielle, do Atelier Tormentas, em Canela, inspira-se no estilo da região da Borgonha
Atelier Tormentas / Divulgação
Com qualidade e potencial de guarda, vinho brasileiro é investimento
Quem se interessa por vinho já ouviu falar, ainda que em tom de curiosidade, sobre os grandes leilões de bebidas raras e antigas, em que uma garrafa pode facilmente ultrapassar as centenas de milhares – de euros, de dólares e, muito mais, de reais. Para se ter ideia, segundo levantamento feito em 2021 pela revista Forbes, o vinho mais caro do mundo chegou a custar inacreditáveis 482 mil euros, o equivalente a quase R$ 3 milhões. Tratava-se de um Romanée-Conti Grand Cru safra 1945.
Valores como esses demonstram que investir em vinhos com grande potencial de guarda pode ser um investimento para lá de lucrativo e vantajoso. Imagine o sorriso de quem resolveu comprar este Romanée-Conti quando ele ainda não estava sequer engarrafado, apostando na sua evolução.
Em proporções muitíssimo menores, alguns vinhos brasileiros começam a se tornar objeto de aposta como bons investimentos. Um exemplo vem do Atelier Tormentas, em Canela, projeto pioneiro em vinificação natural, que se inspira no estilo da região francesa da Borgonha para produzir vinhos de alta qualidade e grande potencial de guarda. Ao lançar, em 2005, um pinot noir elaborado nos mesmos moldes dos grandes vinhos franceses, o vinhateiro Marco Danielle inscreveu o Brasil na rota dos consumidores dos melhores vinhos do mundo. Críticos e revendedores descobriram os tesouros de Danielle e ajudaram a construir a reputação do Atelier.
Hoje, boa parte da produção é comercializada em sistema “vente em primeur”, expressão francesa para a pré-venda, prática comum nas regiões de Bordeaux e Borgonha, em que revendedores compram antecipadamente parcelas de cada safra enquanto os vinhos ainda estão em elaboração, apostando na qualidade e na valorização futura.
– A pré-venda acontece desde os primórdios da vinícola em função da credibilidade que conquistamos pela qualidade, pelo aval da crítica especializada e pelo potencial enorme de guarda e evolução dos vinhos – explica Danielle.
Quando se esgotam no Atelier, os vinhos se valorizam livremente por não haver tabela. Quem tem, vende pelo valor que quer, conforme a lei da oferta e da procura. Já houve, inclusive, leilões com coleções de rótulos já indisponíveis. Com uma produção média de 12 mil garrafas anuais, não é incomum ver todo o estoque de determinado rótulo se esgotar.
A Miolo também tem seu vinho-investimento. Idealizado para ser o ícone da vinícola, o Sesmarias nasceu para ser um produto conceitual, elaborado com parcelas de seis vinhos (Cabernet Sauvignon, Merlot, Petit Verdot, Tannat, Tempranillo e Touriga Nacional), todos feitos na Campanha, com fermentação integral em barricas de carvalho. É o único vinho da marca oferecido com exclusividade ao consumidor final em pré-venda. Cerca de metade das seis mil garrafas da safra 2018 do Sesmarias foi comercializada em pré-vendas. A safra 2020, com previsão de entrega ao consumidor em julho de 2022, similar em volume, deve ultrapassar essa marca, de acordo com as expectativas da vinícola.
– O grande potencial de guarda e o valor final de mercado tornam o Sesmarias bastante atrativo. Com comercialização próxima a R$ 900 por garrafa no mercado, o valor tem redução próxima a 50% em pré-venda. Muitos dos consumidores ainda não têm o objetivo de revenda, deixando o vinho repousar em suas adegas até o melhor momento para consumo, em ocasiões especiais. Porém, já notamos um mercado crescente de valorização e comercialização de safras anteriores, principalmente em lojas especializadas e no ambiente online – revela o enólogo Miguel Almeida, responsável pelo projeto Sesmarias.
Marcelo Casagrande / Agencia RBS
Segundo o criador, preço das garrafas é definido por qualidade, quantidade e procura
Marcelo Casagrande / Agencia RBS
Quanto vale um bom rótulo?
Especialista em finanças e sommelier, Tayla Teloeken já fez grandes negócios comprando e revendendo vinhos. Lembra de um cabernet sauvignon 2010 que revendeu por um valor cinco vezes maior do que o que havia pago, alguns anos antes. Essa prática, porém, ainda não é, segundo ela, um mercado organizado no Brasil. Pelo contrário. Uma mínima parte dos consumidores brasileiros está recém descobrindo o mundo dos leilões de safras históricas, do garimpo de vinhos únicos fora das regiões vinícolas mais tradicionais, como a França. Mesmo assim, encarar os melhores vinhos brasileiros como um objeto de investimento é um movimento que começa, timidamente, a ganhar corpo.
– Isso é a ponta de um iceberg, que vai se desenvolver mais quando o consumidor entender a qualidade do vinho gaúcho, que tem grande potencial de guarda e, por isso, pode ser um bom investimento – define.
Melhor do que ações e ouro, o vinho foi a grande estrela no mundo dos investimentos em 2021, acumulando uma valorização média de 20,3%. No entanto, nenhum dos 100 vinhos listados como ativos era brasileiro. Quem chama atenção para esses dados é o empresário e escritor Michael Waller, autor do livro 101 Vinhos Brasileiros, lançado em 2021. Para ele, comprar um vinho de guarda é sempre um bom negócio, pois a valorização ocorre em diversas dimensões: fim do estoque na vinícola, reajuste por especulação, aumento na procura. Porém, considera ainda prematuro classificar o vinho brasileiro como ativo para o mercado futuro, em função da baixa liquidez e da pouca demanda internacional. Isso não quer dizer, é claro, que seja mau negócio investir em rótulos promissores.
– Existe uma tendência de valorização, com o aumento de consumo nos últimos dois anos no Brasil. É possível que daqui a alguns anos os vinhos brasileiros sejam um investimento consolidado – completa Waller.
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